sexta-feira, 26 de maio de 2006

vertical

foto Christian Coiqny

O que existem são os meus olhos
numa dimensão
onde os meus sonhos não frustrem os meus pés.
Porque existem os meus pés
e a terra entranhada
e a canção seca dos homens.

Joguei-me do fundo de todo lugar distante
que deu nesta rua abismal.

Das raízes dos dedos dos pés
trago flores nas mãos
e segredo e cuidado.

Não tenho amor platônico pela vida:
nasço e morro exatamente hoje.
Sou marinheiro que parte:
cada dia é um porto que fica.

Ameaçam-me atear fogo
às vestes e às paixões
se eu não calo o canto
se eu não sigo as setas
se eu não cesso os beijos
isso
quando mais ardem
dentro e fora de mim
as vestes e as paixões.

(do livro “Roteiro dos pássaros – remixado”)

segunda-feira, 22 de maio de 2006

seletivo

foto Jean-Sébastien Monzani

Quem é você para vender
falsos sonhos e enciclopédias
no terreiro de minha casa?

Tire os seus sapatos:
no meu chão sagrado
só caminha quem tem asas.

(do livro “Poesia provisória”)

terça-feira, 16 de maio de 2006

abstrato

foto Bill Peronneau

No tempo tudo cabe
tudo muda de lugar
tudo some
não ficam parados no espaço
o gosto das frutas
e o cheiro dos homens.

O tempo dispensa a vontade alheia
impõe-se sobre a selva e a cidade
e destas nascem as folhas e os filhos
que o próprio tempo amadurece e faz saudade.

O tempo – enorme! – eleva os deuses
arrasta os homens
e espalha o mistério de uns
sobre a solidão dos outros.

De muito longe o tempo caminha
não como um velho
tão pouco uma criança:
unicamente caminha
- e sugere a esperança
e adormece as rugas.

O tempo não é o mesmo
sobre os aviões e os pássaros:
nas asas de um
é tudo muito rápido
nas asas do outro
é tudo muito livre.

(do livro “Poesia provisória”)

sexta-feira, 5 de maio de 2006

lembrança

foto Kiriko Shirobayashi

Lembro-me que te olhava
e estavas nua
e não havia por perto
nem roupas nem sombras
que te levassem de volta
à sala.


Ficamos únicos
como uma lembrança
do mesmo quarto
dentro de nós.

(do livro "Poesia provisória")

segunda-feira, 1 de maio de 2006

pronominal

foto Marin

É preciso
que nossos dedos se enlacem
sem necessariamente
que nós em nós se passem.

É preciso
que num eclipse eu desapareça
sem que lhe abandone
e quando a lua passar você me esqueça.

É preciso
que eu tenha seu prenome
sem que lhe substitua
quando assinar embaixo o seu sobrenome.

Por certo:
ninguém ama por decreto.

(do livro “Poesia provisória”)