domingo, 5 de dezembro de 2010

bússola

 foto Alberto Monteiro

O que pressinto
me guia.
O que aparece
desconfio.

O que desejo
me norteia.
O que sugere
me previno.

O que choro
me revela.
O que sorrir
me resguardo.

O que escrevo
me entrega.
O que apago
me devolve.

(do livro "Poesia provisória")

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

conjuções

 
 foto Paul Sends

No passado deveria ficar o que nos desagradou
o que doeu, 
o que desmanchou. 

Com tudo
a memória vem
por toda via. 

Cabe no presente 
não por tanto
mas no futuro.

domingo, 14 de novembro de 2010

ocasião

 Douglas Felisman
 
Aproveito
o ensejo
para lhe dar um beijo.

A rima é pobre.
O gesto, nobre.

(do livro "Poesia provisória")

sábado, 13 de novembro de 2010

medida

 
 David Fleshman
 
Caberão no poema
 
quando
                    soltos, 
                                       os beijos

quando
                  largos,
                                         os abraços

quando
                       estradas,
                                                os passos
                                                               ?

(do livro "Poesia provisória")

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

neve

 foto Hague

 Na página em branco
o poema que se foi
à espera de outro que virá.

A página em branco
é ponte
entre
a
saudade
e
a
esperança.

(do livro "Poesia provisória")

sábado, 16 de outubro de 2010

dilacerado

 

Você não tem mais onde me machucar: meu coração é todo um hematoma.

sábado, 9 de outubro de 2010

sentido

 foto Dick Seltmandoski

  O que é um homem
sem um sonho?
O que é um homem
sem o passarinho?
O que é um homem
sem o horizonte?

assim
o homem é carcaça
ossos montados
no calor da tarde
inútil diante da paisagem.

(do livro "A distância e a paisagem")

terça-feira, 31 de agosto de 2010

lençol

 foto Dominique Lefort

 Cubro
o teu corpo nu
com
o meu corpo nu.

(do livro "Roteiro dos pássaros - remixado")

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

profano

foto Marcus Claesson

Ameaçam-me atear fogo
às vestes e às paixões
se eu não calo o canto
se eu não sigo as setas
se eu não cesso os beijos

isso
quando mais ardem
fora e dentro de mim
as vestes e as paixões.


(do livro “Roteiro dos pássaros - remixado”)

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

resgate

foto Larry Sherman

Sempre ao escrever um poema resgato-me de algum lugar.
(do livro "Poesia provisória")

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Bloco de notas

Caros amigos, quando puderem passem pelo ótimo blog do escritor Marcelo Novaes, de São Paulo, que entrevista poetas. Tive a alegria de ser um dos seus convidados.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

cofre

 foto Pomankn

 Quando quiseres
venhas
e gires com as pontas dos dedos
o meu coração.

Encontrarás
teus segredos nos meus olhos abertos.

Guardo no peito
o íntimo
de quem se achega.

(do livro "Poesia provisória")

terça-feira, 13 de julho de 2010

domicílio

 
foto Michael Kenna

Não me procure nesse endereço:
meu coração mudou-se.
Pouco resta do antigo inquilino.


A casa está vazia.


(do livro “Raios”)

segunda-feira, 5 de julho de 2010

minh'avó

foto Nirton Venancio

 Minh’avó caminhava pela grande casa.
Minh’avó muito pequena, até um dia desses,
caminhava pela grande casa.
Continuava com seus passos
seu cansaço
seus laços.
 
Minh’avó alterou a lei da física:
carregava no seu espinhaço tão frágil
décadas décadas décadas
datas datas datas
dias dias dias
carregava festas
aniversários
e algumas compras
carregava guerras
revoluções
e algumas brigas.


Teimosa, não se dava conta de toda essa carga
e olhava pela janela
o automóvel na rua
a moça na calçada
e ninguém mais em direção à igreja.

(do livro “Trem da memória”)

domingo, 27 de junho de 2010

aguardo

 foto Lars Ihring

Quando você voltar
estarei com braços
abertos
o coração
exposto
os olhos
sorrindo.

Os meus beijos
secarão suas lágrimas
o meu corpo
aplacará sua febre
e nossas noites
iluminarão os dias.

O que é saudade
será sempre a festa de volta.

(do livro "Poesia provisória")

segunda-feira, 21 de junho de 2010

voyeur

 

Da janela do oitavo andar vejo as solidões nos escaninhos dos apartamentos: um espelho onde me multiplico.

(do livro "Poesia provisória")

sexta-feira, 18 de junho de 2010

o morto

 Gil Vicente, repouso, nanquim sobre papel
 
O morto
tomou destino ignorado:

em que planície nos céus
sibila o seu silêncio?

Com sua armadura desfeita
o que resta é inútil:
não suporta o vento
(que sopra com a chuva)
não será restaurado nos museus
(que espiam a história)
nem se moverá com as lembranças
(que amontoam os retratos).

O morto
tomou destino ignorado.

Não tenham medo:
o morto não se levantará
de sua solene posição

deitado como nunca
com seu nariz e seu sapato
             em
              riste. 

O morto
      (saibam)
não segue no cortejo:
      segue um morto
      (peso inútil)
      que o limite do nosso olho vê.

O morto independe da vontade
dos que lhe jogam areia e flores
dos que lhe dizem orações e calam
dos que choram e esquecem
-          o morto
                  agora
                            é eterno.

Lembramos o tamanho do morto
com suas roupas
com sua voz
com sua dor
e choramos o tamanho que falta
                      a lágrima que salta
                      em nós
até quando aprendermos
a não ser somente vivos.
  
De nada mais sabemos
até que o morto nos mande notícias
e que seu vulto passe ao longe
como passam os viajantes
                               (depois)
                               do entardecer.

Maior é o morto
       na viagem
que ele continua
  
(em que planície nos céus?)

                                    (do livro "Poesia provisória")

segunda-feira, 14 de junho de 2010

evidência

 
 foto  Eric Alan Pritchard

Estou seguro que foi por sua boca, minha amada. Encontrei suas roupas junto a minha, seu corpo junto ao meu, seus dias juntos aos meus.

(do livro "Poesia provisória")

quinta-feira, 10 de junho de 2010

resguardar

 foto Missy Gaido Alleen

 Acordou, levantou, nem arrumou a cama, com receio de desfazer os bons sonhos.

(do livro "Poesia provisória")

segunda-feira, 31 de maio de 2010

sobre viver

 
 Gil Vicente, papel sobre nanquim
 
só escaparemos se conversarmos
se sentarmos
à mesma mesa
e trocarmos olhares
como amigos
ou como sobreviventes.

(do livro "A paisagem e a distância")

terça-feira, 25 de maio de 2010

asas

 foto Bogdar Jarocki

Tirem-me a roupa
o chapéu contra o sol
tirem-me até os braços
as pernas
tampem-me os olhos
mas não tirem as asas
que criei pra mim

tirem-me o domingo
a manhã contra a noite
tirem-me até os feriados
os dias santos
rasguem os calendários
mas não tirem o tempo
que criei pra mim

tirem-me os lábios
o beijo contra o gelo
tirem-me até a voz
o delírio
adormeçam o sexo
mas não tirem o coração
que criei pra mim. 

(do livro "Poesia provisória")

terça-feira, 11 de maio de 2010

sempre

foto Marin

Eu te quero
com a mesma intensidade
em que me guardo
embora
sempre no menor gesto
do olhar
me entrego de volta
sem nunca ter partido.


(do livro “Poesia provisória”)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

prenúncio

foto Sidney Saniago
 
Faço
suas feições
no meu coração
seus contornos
na minha pele
seu endereço
no meu peito.

Nunca me devolva
a mim se me ganha.
Eu já me entreguei
e você não levou.
Aguardo-lhe com minha memória.

Ameaça partir,
menina má:
você adora assustar o trovador.
(do livro "Poesia provisória")

terça-feira, 27 de abril de 2010

largura

foto Pascal Renoux

O melhor momento
é ser contigo sempre
pois não se larga uma parte de si
não se parte da largura de si.


(do livro “Poesia provisória”)

terça-feira, 6 de abril de 2010

simetria

foto David Fokos
 
O estender do mar é como o impossível:
o lado de cá
é
sempre
o infinito do lado de lá.

E entender de amar é como o impossível:
o meu lado de cá
é
sempre
o infinito do teu lado de lá.

(do livro “Poesia provisória”)

sexta-feira, 2 de abril de 2010

avesso

 foto Bettmann Corbis

Eu acendo a luz
você me deixa no escuro.

Eu estendo pontes
você ergue muros.

Assim não dá!

(do livro "Raios")

sábado, 6 de março de 2010

seletivo

foto Jean-Sebastien Monzani

Quem é você para vender
falsos sonhos e enciclopédias
no terreiro de minha casa?

Tire os seus sapatos:
no meu chão sagrado
só caminha quem tem asas.

(do livro “Poesia provisória”)

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

afluente

foto Christian Coigny

Na minha terra
há também um rio.
Um rio
que corta minha cidade
que corta minha vida
que corta este poema.

Ele vem
vai
e vem
com suas enchentes
(as enchentes
na cidade
as enchentes
na minha vida
as enchentes
neste poema
- quando não resisto mais

às lembranças,
às represas,
aos mergulhos).


(trecho do livro “Trem da memória - um poema")

sábado, 20 de fevereiro de 2010

bagagem

foto Edward Dimsdale

Dentro de mim
cabe uma cidade
outra cidade
e mais uma cidade
dentro de mim
cabe o universo
e mais o vilarejo onde nasci

meus pés
arrastam lembranças
espalham o cheiro da terra
soltam o corpo no sorriso
todas as veias
do coração
bifurcam na próxima cidade
e levam ao mesmo rio
diante do sol
abrem o meu olhar
horizontando o dia.

(do livro "Poesia provisória")

domingo, 7 de fevereiro de 2010

apartado

foto Jean-Sebastien Monzani

A distância nos dá medo
quando as coisas estão paradas.

É por você estar longe
e não ter previsão alguma do tempo
que o presente continua sobre a mesa.

O mundo parece inútil
nesse pedaço em que não posso tocá-la.
Deve ser impressão desfocada dos olhos
ou sua ausência é uma eternidade em mim e na sala.

Há um telefone, uma porta e meus passos contidos.
Para cada lado o espaço para se medir.
O coração achará em algum canto as chaves e os motivos
para lhe encontrar na volta em vez de partir.

O medo nos distancia
das coisas em movimento.

(do livro "Poesia provisória")

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

anônimo

foto Nicholas Davies

Eu nunca deixo pistas dos meus pecados.
Escondo meus delitos
e deixo a condenação para a volta.
Estou muito apressado.


Eu nunca deixo atalho
para me descobrirem:
prefiro o próximo encontro
com o que encontrar próximo aos meus olhos.

Eu nunca deixo traços dos meus planos.
Deixo o resultado de tantos enganos
como pudesse ser também seu
aquilo que foi somente meu.

Não passo procuração para sentimentos
enquanto viajo para lugar desconhecido.

Este poema pode me custar a vida.
Pode me custar os amigos.
E me gostarem os inimigos.

Mas não deixarei rascunho dos meus reversos.


(do livro “Poesia provisória”)

domingo, 24 de janeiro de 2010

prenúncio


 foto Marc Weisman
 
Faço
suas feições
no meu coração
seus contornos
na minha pele
seu endereço
no meu peito.

Nunca me devolva
a mim se me ganha.
Eu já me entreguei
e você não levou.
Aguardo-lhe com minha memória.

Ameaça partir,
menina má:
você adora assustar o trovador.

(do livro "Poesia provisória")

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

a mais completa tradução


foto Marcus Claesson

"Ser poeta é tirar de onde não tem e colocar onde não cabe."

(Pinto do Monteiro, repentista paraibano)

domingo, 3 de janeiro de 2010

esconde-esconde

foto Jean-Sébastien Monzani

Você troca tudo de lugar
esconde minhas roupas
para quando no amanhecer eu lhe procurar.

Você troca o sol pelo luar
esconde os meus beijos
para não amanhecer quando a noite acabar.

Você troca os cds de lugar
esconde os meus livros
para quando amanhecer eu me desesperar

Meu peito alcança o seu olhar.
A casa é pequena, o abraço tão largo:
eu sei onde seu coração está.


(do livro “Poesia provisória”)